Direito de Laje: Desafios
Marcelo Weingarten e
Renato Cymbalista
O Direito de Laje
Há muitos anos, urbanistas e advogados vêm defendendo a instituição do chamado “Direito De Laje” no ordenamento jurídico e urbanístico no Brasil. No apagar das luzes de 2016, a Medida Provisória nº 759, de 22 de dezembro, propõe a regulamentação do instrumento, também chamado “Direito de Sobrelevação”. São centenas de milhares os imóveis que foram constituídos mediante venda de laje, nas maiores cidades do pais – justamente aquelas que apresentam os mais graves problemas de acesso à terra e à moradia. O “Direito de Laje” é tratado apenas nos artigos 25 e 26, que alteram o Código Civil em seu artigo 1225, e acrescentam ao mesmo o artigo 1510-A. A medida provisória trata de vários assuntos, alguns deles altamente problemáticos, ou seja, não se trata aqui de defendê-la como um todo, nem de defender a prática de enfeixar diferentes assuntos na mesma medida provisória. A medida provisória é problemática principalmente por desfazer um percurso de regularização fundiária que já estava em curso no país. O que tratamos aqui são as novas possibilidades e os novos desafios que seriam abertos pela institucionalização do Direito de Laje, sem entrarmos nos conteúdos do restante da Medida.
A ideia daria um lugar na ordem jurídica a uma pratica já há muito tempo corrente nas periferias, favelas e bairros populares no pais, a venda de lajes. Trata-se de um dos procedimentos básicos de construção e adensamento fora dos eixos de elite: um proprietário compra ou ocupa um terreno; constrói sua casa (em geral por conta própria) e a cobre com uma laje. Quando existem os recursos, ele constrói uma casa acima da laje, garantindo acesso independente, cedendo a laje para um familiar, alugando ou vendendo. Em muitos casos a laje é vendida nua e a construção ocorre por conta do comprador. Frequentemente o comprador refaz a operação, cobrindo sua própria casa com uma laje que e posteriormente vendida.
O procedimento da venda de lajes produziu verdadeiros predinhos nas regiões mais pobres das nossas cidades, em uma ocupação que pode parecer feia e predatória aos olhos da classe média, mas que traduz as formas de ocupação e rentabilização do caro solo urbano por parte daqueles que não possuem outras formas de acesso à moradia, ao mercado imobiliário formal e ao credito imobiliário. Ao reconhecer o direito de laje, o Estado assume uma postura de não-julgamento moral desse procedimento e de legitimação de práticas não previstas. Mas não vamos esquecer que o direito de laje é uma solução técnica que sucede décadas de debate de moradores e de ativistas.
Trata-se de uma derivação de um instrumento já existente: o Direito de Superfície, instituído pelo Estatuto da Cidade (Lei 10.257 de 2001, art. 21[3]), que institui a separação entre direitos de propriedade e direitos de construção, afastando-se do princípio antes em voga de que “tudo o que existe sobre um terreno pertence a ele” (Accessorium sequitur principale – o acessório acompanha o principal). Paulino (2017) critica a própria instituição do Direito de Laje, defendendo que a figura do Direito de Superfície já bastaria para regular a compra e venda de lajes. De fato, o Direito de Superfície poderia ter sido interpretado nesse sentido. Mas o fato é que isto ainda não foi feito, nesses 15 anos desde que temos esse instrumento aprovado: as lajes não vêm sendo registradas como direito de superfície. Além disso, tanto o Estatuto da Cidade (art. 21) quanto o Código Civil (art. 1.369) se referem ao Direito de Superfície vinculado ao terreno, e na cidade real as transações com lajes se desvinculam inteiramente da propriedade dos terrenos, como tratamos adiante.
Com o direito de laje, a separação entre propriedade e direitos construtivos ganham regulamentação e direção próprias, que permitiriam nortear agentes e procedimentos que ocorrem há muito tempo, mas de maneira informal. Assim, segue uma das diretrizes do Estatuto da Cidade, o “reconhecimento da cidade real”, ou seja, a adoção das formas efetivas de urbanização – e não modelos ideais de cidade presumida, ou pressentida – como matéria-prima básica da ordem jurídica e administrativa.
Não se sabe se a medida provisória será efetivamente implementada, como afirmamos ela é polêmica e altera a trajetória de processos de regularização fundiária em curso. Pode ser alterada ou rejeitada pelo Congresso. De qualquer forma é relevante que a figura do direito de laje entre no debate. E mais do que “sim ou não”, defendemos aqui “em que termos” o direito de laje poderia contribuir para aproximar a cidade informal da formalidade, inserindo os bairros informais nos sistemas formais de proteção de direitos. Evidentemente, não se resolveriam todos os problemas da cidade com isso, e outros e novos problemas apareceriam.
Conforme o texto da Medida Provisória, a aplicação do direito de laje somente se aplica quando for impossível a individualização dos lotes ou unidades, a sobreposição ou a solidariedade de edificações ou terrenos, contemplando o espaço aéreo ou o subsolo de terrenos públicos ou privados, tomados em projeção vertical, criando assim uma unidade imobiliária autônoma. As unidades a serem reconhecidas como autônomas devem ter acessos próprios.
Construímos aqui algumas reflexões preliminares: uma análise da literatura até aqui existente, que recebe novas problemáticas; e um conjunto de pontos que abrem-se quando o Direito de Laje aparece nos debates mais institucionais.
Uma necessária revisão da literatura
Ainda que as favelas e as diferentes formas de coabitação, cessão de uso e sublocação tenham mais de um século de existência no Brasil, o fenômeno da venda de lajes é muito mais recente. Acompanhou o adensamento das periferias e das favelas, e a substituição dos barracos de madeira por construções de alvenaria. Assim, o procedimento se prolifera a partir da década de 1980. Isso explica que a literatura que trata do Direito de Laje na perspectiva da regularização fundiária e do direito real seja muito recente.
A maior parte dos artigos situa-se no campo da doutrina, de autoria de juristas ou ativistas progressistas, defendendo a implementação do instrumento e sua inserção na ordem jurídica brasileira.
Ricardo Lira (1997), em um dos primeiros artigos sobre o tema, cria o termo “direito favelar”, reconhecendo sua existência fática, e já compara o direito de laje existente nas favelas com o previsto no direito suíço, classificando-o como “direito alternativo stricto sensu, com laivos de manifestação de pluralismo jurídico”, não importando aqui se reconhecido pelo Direito Oficial, ou se, como era o caso, utilizado de fato pelas comunidades. O mesmo autor (2004) mostra como o não reconhecimento oficial do direito de laje causa como efeito colateral o fortalecimento dos poderes paralelos, citando a Favela da Rocinha, no Rio, onde os traficantes permitem a construção sobre a laje, desde que esta não dificulte uma eventual fuga.
Silvia Regina de Assumpção Carbonari (2007), aponta o direito de laje também como fato nas comunidades do Rio de Janeiro, sendo considerado um “direito sobre outro direito (oficial ou não)”. Amarante (2012) defende a legitimidade do direito de laje como exemplo demonstrativo de que o Estado não é a única fonte exclusiva de Direito, pregando o pluralismo jurídico. Apontando para a problemática das propriedades autônomas no mesmo terreno. Faria e De Poli (2010) indicam que o Direito de Laje estabelece a tripartição da propriedade, ou seja, a propriedade do solo (titularidade do concedente), propriedade da superfície (superficiário) e a propriedade da sobrelevação, que ingressa no patrimônio do segundo cessionário.
Na busca pela legitimação do instrumento na ordem jurídica brasileira, autores trouxeram as referências de instrumentos similares previstos nos direitos francês (surélévation), português (direito de se construir sobre teto alheio) e suíço (superfície au deuxième degré) (Bellucci, 2010).
Claudia Franco Correa (2010) traz um dos poucos estudos empíricos, sobre a favela de Rio das Pedras entre a Barra da Tijuca e Jacarepaguá no Rio de Janeiro, onde encontra edifícios de até 10 andares construídos mediante venda e compra de lajes; a possibilidade de venda de lajes antes mesmo de serem edificadas; e mostra como opera na favela até mesmo um sistema cartorário informal, com uma associação de moradores que detinha os registros dos nome e endereços das “propriedades” na favela, socialmente legitimada.
Em que pese o fundamental papel da literatura sobre o direito de laje como meio de advocacy pela aprovação do instrumento, a partir de agora atingimos um novo patamar no debate, pois o direito de laje está começando a aparecer em textos legislativos. Isso abra uma série de questões mais específicas. Em um horizonte de instituição do instrumento, seriam necessários avanços nos procedimentos jurídicos, administrativos e registrários que efetivamente viabilizarão a implementação do direito de laje garantindo condições de habitabilidade e segurança. Isso deve ser feito garantindo qualidade construtiva e urbanística, e não a legitimação da precariedade. A literatura existente praticamente não trata desta temática, e requer um esforço intelectual e institucional para criar novos procedimentos. Apontamos aqui alguns pontos.
Matricula e Cartório
O reconhecimento do direito de venda de superfícies significaria a criação de milhares de unidades imobiliárias autônomas. Continua existindo a figura do proprietário do terreno, mas quem mora por exemplo no “primeiro andar” terá o direito de obter uma escritura, através de uma matricula diferenciada. Não se trata de desafio simples, e serão vários os casos diferentes, cada um deles trazendo questões especificas.
Os casos mais fáceis são aqueles em que o proprietário possui a matricula regularizada do terreno e da construção. O registro funcionará quase como um desmembramento de um terreno, com a abertura de uma nova matricula no Cartório. Será necessária a medição e representação gráfica do terreno e da edificação, e será necessário esclarecer as formas de acesso as unidades. Conforme consta da lei, só será possível o registro de unidades que funcionem de forma autônoma, mas muitas vezes o acesso no nível térreo significa algum tipo de compartilhamento de áreas. Isso deverá ser definido, e o proprietário do terreno deverá concordar com um tipo de servidão de passagem ao transferir a laje. Uma vez instituída essa servidão ela não poderá ser revertida, e o comprador terá o direito de revenda, e assim sucessivamente com os compradores seguintes.
Aqui cabe a dúvida levantada por Marcelo Alves Pereira (site Jus Brasil, 28/12/2016). Será dado o direito de preferência ao proprietário do terreno ou da construção inferior quando a laje for colocada no mercado para revenda? A favor do direito de preferência pesa a especificidade das relações espaciais, pois frequentemente há espaços com algum tipo de compartilhamento. Mas contra isso pesa a ideia de que a venda de laje não deve ser tratada como aquisição de propriedade de segunda categoria, e o proprietário do terreno tem o poder de definir as formas de acesso quando constrói e vende as lajes, deve pensar nisso de antemão. Caberia uma consulta às práticas atuais e informais: os proprietários vêm sendo consultados nesses casos? Têm algum poder de veto ou de preferência?
Como se vê, mesmo os casos mais simples já apresentam questões complexas. E eles podem se tornar ainda bem mais complicados. Para terrenos com escrituras regulares, mas com a edificação não registrada, será necessário o registro do edifício como um todo, já com a estrutura de propriedade definida. Será necessária a apresentação de planta para regularização na prefeitura, um tipo de anistia, e os imóveis, agora divididos, passam a pagar IPTU.
Muitos terrenos não possuem escrituras regulares, e aqui aparece um grande desafio para os cartórios. Ações de usucapião ou de concessão de direitos reais de uso podem levar anos até terminarem e suas sentenças serem registradas. Uma alternativa é registrar a transação em um cartório de notas, que gera um conjunto de direitos, inclusive sucessórios – mas não garante a regularidade urbanística do imóvel.
O caso mais difícil é também um dos mais recorrentes: lajes vendidas em construções feitas em terrenos públicos. O registro dessas construções pode se dar por instrumentos como a concessão especial de uso para fins de moradia, mas quem outorga esse título é o estado, o morador é na pratica um concessionário, e como tal, é muito problemática a ideia que ele possa vender uma laje de uma concessão, como se fosse sua. Esse procedimento acontece muito frequentemente na pratica, mas é difícil imaginar que o Estado possa chancela-lo.
Alguns pontos em aberto
Em entrevista à Agencia Senado, o Ministro das Cidades Bruno Araújo, declarou que “as mudanças podem gerar o ingresso de ativos na economia. Com os documentos em mãos, os moradores terão seus imóveis valorizados e poderão ter acesso a crédito”. Aqui, percebemos um problema de fundo: uma coisa é reconhecer a cidade real e regularizar, outra é criar instrumentos para alimentar a ciranda financeira e imobiliária, para aumentar o endividamento da população. É uma contradição estrutural da propriedade no sistema capitalista, que nem essa nem outras formas de registro resolvem.
O direito de laje surgiu como prática construtiva e econômica operado por pobres; foram os pobres que deram uma solução registrária para o direito de laje, mantendo escrituras e registros das transações nas associações de moradores das favelas (Correa, 2010), e foram os advogados e urbanistas que defendem o direito à moradia dos mais pobres que construíram o caminho de inserção do instrumento na legalidade. Ou seja, o direito de laje tem um DNA profundamente vinculado aos assentamentos populares. No entanto, da forma como está proposto, o direito de laje não expressa esse histórico na letra da lei. Ela apenas institui o direito sem discriminação de situação ou classe social. É diferente, por exemplo, de instrumentos como a Concessão Especial de Uso para fins de Moradia e o Usucapião Especial Urbano, que garantem dispositivos com prioridade para os mais pobres. E já existem leituras que defendem a aplicação do direito de laje para permitir que uma empresa em dificuldades econômica venda a sua laje para adquirir liquidez (Faria e De Poli, 2010), o que a Medida Provisória não impede.
Correa (2010) aponta para a problemática da arquitetura da favela, configurando moradias verticais, pois o morador que construiu sua casa sobre uma laje muitas vezes acaba vendendo a laje de cobertura de sua casa a outro comprador, e assim sucessivamente. Mas cabe uma questão que na medida provisória aparece no parágrafo 5º da Lei: “o adquirente não poderá instituir sobrelevações sucessivas”. Isso significa que o benefício valeria apenas para o “primeiro andar”? Ou estabelece que o vendedor só tem direito a alienar a laje uma vez, e que o comprador “de cima” poderá fazê-lo também uma só vez? Se a venda for válida apenas para o primeiro andar, trata-se de um problema de reconhecimento da cidade real. Como fazer a regularização de um edifício cujas lajes já foram vendidas três ou quatro vezes? Registrar apenas a primeira laje e já de início criar irregularidade? Mandar demolir os demais pisos? Levando em conta puramente o funcionamento real da cidade, pensamos que essa limitação está equivocada. Deveriam ser autorizadas tantas lajes quantas forem autorizadas para predinhos sem elevador na cidade – 4 ou 5 pisos, com os quais cidades famosas pela sua qualidade de vida vem funcionando bem há séculos, como Paris e Berlim. O que seria necessário é provar que a estrutura das construções é calculada de forma a oferecer segurança para o número de pisos que se deseja registrar. Até para ter instrumentos de enfrentamento de abusos seria importante dar um formato administrativo e jurídico para a venda de lajes.
Outro ponto é a capacidade administrativa que deveria ser instituída nas prefeituras, ela é inexistente atualmente. É um grande desafio, pois é importante que se garanta a segurança nas edificações, e a responsabilidade técnica por elas. Seria necessária a construção de procedimentos, parâmetros, expertise técnica, e isso tudo tem um custo administrativo.
A instituição do Direito de Laje não resolveria todos os problemas existentes nas nossas cidades, e certamente criaria novos. Mas defendemos aqui que é um horizonte, para podermos avançar no reconhecimento da cidade real e no duro processo de integração de práticas não oficiais à cidade formal. A Medida Provisória apresenta inúmeros problemas, e mais retrocessos do que avanços. Mas defendemos que é bom mantermos o direito de laje como horizonte.
Referências bibliográficas
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Carbonari, Silvia Regina A. A função social da propriedade territorial urbana e a concretização do direito de moradia digna: o novo papel do direito de superfície. Dissertação (mestrado em Direito), Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, 2007.
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Correa, Claudia F. e Menezes, Juliana Barcellos C. “Cidade e Alteridade: A regularização fundiária nas favelas nos casos de “Direito de Laje”: construindo pontes entre o direito inoficial e o direito vigente”. Revista de Direito Urbanístico v. 2, n. 1, São Paulo, 2016.
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[1] Marcelo Weingarten é advogado e administrador de empresas.
[2] Renato Cymbalista é professor da FAU-USP e pesquisador do Laboratório para Outros Urbanismos.
[3] Art. 21. O proprietário urbano poderá conceder a outrem o direito de superfície do seu terreno, por tempo determinado ou indeterminado, mediante escritura pública registrada no cartório de registro de imóveis.