Praça da República

Um breve histórico sobre a Praça da República

A ocupação da Praça da República começa, segundo registros, no século XVIII. Durante o começo da ocupação, se tratava de uma área periférica frente à cidade histórica (“centro velho” x “centro novo”). Devido a isso, era primeiramente um local de baixo valor da terra e, portanto, abrigava edifícios de usos menos nobres, como um hospital para portadores de varíola e um hospício.

Com a construção do Viaduto do Chá, consegue-se a transposição do Vale do Anhangabaú como barreira. Liga-se, assim, o “centro velho” e o “centro novo”.

Em 1894, constrói-se na praça a sede da escola Caetano de Campos, projetada pelo escritório de Ramos de Azevedo. Pouco depois disso, em 1905, ocorre uma reforma na praça introduzindo as pontes e lagos (próximos à configuração atual), nos moldes europeus.

No começo dos anos 1920, a praça começa a se estabelecer como polo de entretenimento da cidade (primeiramente da aristocracia, popularizando-se nas décadas seguintes), com diversos cinemas – como o antigo Cine República (um dos maiores de São Paulo em número de assentos) – e locais de shows.

Nos dias atuais, por fim, a praça se estabelece como lugar plural e metropolitano, com diversos tipos de ocupação e públicos. Recentemente, tem sido palco do ressurgido e popularíssimo carnaval de rua de São Paulo, bem como de manifestações políticas de cunhos variados (de secundaristas a manifestantes ligados à esquerda contrapondo-se à Paulista ocupada por manifestantes de direita).

 

Relevância para a memória LGBT+ e sua memorialização

A memória da Praça da República se cruza com a memória LGBT+ a partir do começo do século XX. Foi naquela região que surgiram os primeiros shows de transformistas do Brasil, primeiramente frequentados em grande maioria pelo público heterossexual.

A partir das décadas de 1950 e 1960, com o florescimento de lugares de convivência da população LGBT+ nas imediações (Galeria Metrópole, Paribar, etc.), a Praça da República vira rota dos footings e tours, que consistiam em percursos realizados a pé por gays para conhecer pessoas e flertar. Como é dito no filme São Paulo em Hi-Fi, os bares, tours e footings desta época, ainda não se caracterizavam como lugares de pegação ou atividade sexual, mas sim como lugares de permanência, flerte e de se conhecer novas pessoas.

Neste mesmo período, a interação gay por meio da atividade sexual ficava relegada aos “cinemas, banheiros públicos e praças”. Com a decadência dos grandes cinemas da aristocracia paulista (como o Cine Barão, Cine Windsor, Cine Marabá, Cine Ipiranga dos anos 1940), localizados na região República, os mesmos passam a ser cada vez mais ocupados – e até sustentados – pelo público gay para fins de pegação. A Praça da República passa, assim, a ser reconhecida pela população homossexual como ponto de encontro, seja para atividade sexual, seja para os footings, e eventualmente começa a ser ocupada posteriormente também pela prostituição masculina e de travestis e transexuais.

A partir daí, começam a surgir, na Avenida Vieira de Carvalho (que liga a Praça da República ao Largo do Arouche) bares (Caneca de Prata, Prainha do Arouche, etc.), saunas e casas noturnas ligadas ao público LGBT+. Com o início de uma distinguibilidade de classes dentro da população LGBT+ no fim dos anos 1970, o centro com o tempo passa a ser considerado lugar de ocupação das “bichas pobres” e das “bichas velhas”, enquanto que as regiões mais próximas à Avenida Paulista, Jardins e pontualmente o Ibirapuera passam a ser considerados lugares onde estavam as “finas”.

É interessante notar que, apesar dessa distinguibilidade, quando surge a cultura das boates, a região da República e do Arouche se caracteriza também como região dos afters de pegação (festas que começam tarde da madrugada, e para onde vão as pessoas, já muito bêbadas, depois de saírem das boates tradicionais), mais notadamente com a boate Val Improviso, localizada no Largo do Arouche.

É importante apontar que eram comuns as invasões policiais às boates e festas LGBT+ durante a ditadura militar. No ano de 1980, tem início na Praça da República uma passeata pelo centro de São Paulo, feita por cerca de mil gays, lésbicas, travestis e prostitutas, que gritavam “Abaixo a repressão – mais amor e mais tesão” contra a violência dos policiais.

Frente a um quadro de decadência e abandono, a Praça da República se consolida nos anos 90 como lugar de cinemas ligados ao sexo, e de prostituição, porém na Vieira de Carvalho se mantém um lugar de vida noturna e de fins de semana, com a presença intensa dos bares e a intensificação da presença das saunas e hotéis.

No dia 06 de fevereiro de 2000 na Praça da República o adestrador de cães Edson Neris da Silva é espancado até a morte por um grupo de 18 skinheads. Edson andava na praça de mãos dadas com seu namorado (que conseguiu escapar), quando o casal foi atacado. Devido a isso, o local teve sua força como lugar de memória LGBT+ potencializada, na medida que serviu de palco para um crime de ódio que comoveu o país e deu força também para a luta pelos direitos dos LGBT+.

Mais recentemente, em 2014, quando da fundação do Museu da Diversidade Sexual, decidiu-se por estabelecer a sede do museu na estação República do Metrô, face à importância do lugar para a memória LGBT+, sobretudo após o assassinato de Edson Neris.

Face aos fatos históricos apresentados, justifica-se a relação íntima da Praça da República com a memória LGBT+ de São Paulo e do Brasil.

Primeiramente, devido ao extenso período de ocupação da praça pelo público LGBT+, existem diversas instâncias de memorialização de caráter artístico-popular e acadêmico. Vídeos de época, programas de televisão, entrevistas, fotografias e até a própria vivência das pessoas fazem parte deste processo de memorialização, servindo de base para a construção de pesquisas acadêmicas e filmografia. Notadamente, o documentário São Paulo em Hi-fi e os livros Devassos no Paraíso, de João Silvério Trevisan, e Além do carnaval, de James Green, são exemplos de filmografia e literatura histórico-acadêmica que constroem em vários momentos a memorialização da Praça da República em relação à ocupação LGBT+.

A instância máxima da memorialização de um lugar é o reconhecimento dele como lugar de memória pelo poder público. Assim sendo, dois fatos importantes para esse processo no caso da Praça da República aconteceram (e ainda estão acontecendo) no século XXI: O primeiro é, em 2004, a abertura do processo de tombamento da praça, que, apesar de a princípio não mencionar a ocupação LGBT+, ainda está em aberto e em processo de discussão, o que significa que a questão LGBT+ pode ser levada e consideração nos pareceres técnicos ainda em elaboração. O segundo, mais concreto, é o estabelecimento do Museu da Diversidade Sexual na estação República do Metrô, em 2012. O MDS, um museu público, é o único museu do hemisfério sul e terceiro do mundo a tratar sobre a temática LGBT+. A escolha do lugar se deu por se tratar de um lugar de memória na opinião da organização do museu, especialmente por causa do assassinato de Edson Neris, que lá ocorreu. Tal escolha, legitimada pelo Governo do Estado, consolida na esfera máxima da sociedade, o Estado, a memorialização da Praça da República como lugar importante para a população LGBT.

Exposição no Museu da Diversidade, localizado dentro da estação República do Metrô (foto de José Cordeiro)

[Texto de Lucas Cunha]

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Referências:

GREEN, J. N. Além do Carnaval. A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora da UNESP, 1999.

TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 4a Ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.

STEFFEN, L. (Direção). São Paulo em Hi-Fi. 2016.

STEFFEN, L. Do footing aos afters: vem com a gente fazer uma viagem pela cena noturna LGBT de São Paulo nos últimos 100 anos. Fonte: music non stop: https://musicnonstop.uol.com.br/uma-viagem-pela-cena-noturna-lgbt-de-sao-paulo-nos-ultimos-100-anos/.  Acesso em 08 de abril de 2018.