Memórias de dor na paisagem urbana de Buenos Aires: o Parque de la Memoria
Trabalho Final de Graduação de Rebeca Lopes Cabral, mestranda na FAU-USP e pesquisadora do OUTROS, 2016. Acesse aqui o trabalho na íntegra
O Parque de la Memória é um espaço emblemático para a memória e as representações da última ditadura militar na Argentina (1976-1983). É um espaço público construído em homenagem às vítimas da última e mais violenta ditadura militar16. Situado à 10km do centro de Buenos Aires, numa área de quatorze hectares margeantes ao Río del Plata, o local insere-se em um local crucial da topografia de dor de Buenos Aires: às margens do rio onde os corpos mortos eram jogados desde os apelidados Vuelos de la Muerte; perto do aeroporto Jorge Newberry, da onde saiam os Vuelos e nas imediações da Universidade de Buenos Aires (UBA), onde estudavam muitos dos desaparecidos. A iniciativa da construção partiu de organizações de direitos humanos e grupos da sociedade civil argentina e, apesar das discussões sobre o caso terem sido iniciadas no começo de 1990, somente em 2001, após um longo processo de disputas, foi inaugurada a primeira parte do parque. Atualmente o lugar é composto pelo monumento a Las victimas del terrorismo de Estado, onde estão escritos parte dos nomes dos desaparecidos, um conjunto poli escultural e um espaço educacional. A partir do caso interessa para esse TC refletir sobre o acesso às memórias e às informações sobre a ditatura desde o espaço público. Ou seja, como as memórias individuais e coletivas operam de forma dialética com espaço? Como a partir e através daquelas pedras tornam-se capazes de proporcionarem vias simbólicas e politicas de acesso à memória para os que viveram e didáticas aos que não viveram? Quais são os atores, disputas personagens e imaginários por de trás da espacialidade do parque-memorial e, assim, como se originam as escolhas representativas lá presentes? Enfim, quais as possibilidades éticas, estéticas e simbólicas de representação da memória através dos lugares ditos de memória e consciência?
A investigação olha criticamente para esses pontos, identificando e problematizando as representações presentes no parque. Afinal, enquanto lugares da cidade, lugares de memória, como esse em questão, constituem um panorama paradoxal. Por um lado, são inerentemente críticos e cooperam para a ampliação dos debates e tomada de consciência histórica acerca do assunto; são provas legais dos crimes ocorridos; e possuem grande importância simbólica para vítimas e parentes das vítimas. Por outro, estão submetidos às lógicas das cidades contemporâneas, sujeitas às leis do mercado e à banalização da tradição histórica. Nesse sentido o recorte proposto de estudo – o Parque de la Memoria – justifica-se ainda pelos alinhamentos teóricos construídos durante a pesquisa.
Situando-se na conhecida discussão apresentada por Theodor Adorno em 1949 no texto Crítica Cultural e Sociedade, quando o autor afirmou que escrever um poema depois de Auschwitz seria um ato bárbaro, a pesquisa identificou-se com o posicionamento de alguns autores que acreditam na necessidade de trabalhar os traumas. Estes pensadores mostram, através de suas análises, possibilidades críticas das práticas de memórias contemporâneas. Assim a bibliografia compõe-se de autores latino-americanos – dentre alguns os argentinos Hugo Vezzetti, Ana Guglielmucci, Graciela Silvestri, Emílio Crenzel, Elizabeth Jelin; os brasileiros Renato Cymbalista e Marcio Seligmann-Silva; a cubana-mexicana Ileana Diéguez – europeus e norte americanos – como Andreas Huyssen, Georges Didi-Huberman, James S. Young e Gabi Dolff-Bonerkamper. Associado às referencias bibliográficas também conforma a plataforma do presente trabalho os materiais iconográficos (plantas, desenhos, etc), institucionais, entrevistas e conversas informais coletadas em campo durante o Estágio de Pesquisa no Exterior na Universidad de Buenos Aires, no departamento de ciências antropológicas, sob orientação de Ana Guglielmucci e com financiamento da Fundação de Amaro à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Através da análise desse material identificou-se três temáticas centrais, a partir das quais a bibliografia foi categorizada: os diálogos entre global e local nas práticas de memória, que pretendeu localizar as práticas de memória argentinas em um cenário global; a paisagem de dor em Buenos Aires, que mapeou as principais questões relacionadas às práticas espaciais de memória local; e o caso do Parque de la Memoria, objeto de aproximação escolhido localizar, ainda mais, as questões teóricas antes estudadas. Por meio dessas frentes vislumbrou-se, dentre as várias possibilidades de desenvolvimento da pesquisa, a estrutura do presente trabalho de conclusão. Escolheram-se três entradas, três olhares distintos que, sempre a partir do parque, discutem as relações entre espaço público, memória da ditadura e arquitetura. São elas: a topografia de dor de Buenos Aires e o Parque de la Memoria; a construção do Parque de la Memória: memórias e debates; e, por fim, o Parque de la memoria: aspectos espaciais e simbólicos.
O primeiro capítulo, “A topografia de dor de Buenos Aires e o Parque de la Memoria”, busca localizar politicamente o parque numa constelação de movimentos de memória argentinos. Objetiva-se compreender os significados e a importância da sua construção enquanto espaço público em homenagem aos desaparecidos. Assim, busca-se revelar atores, grupos, disputas, ferramentas e características, construídos ao longo da história argentina que atuarão posteriormente do processo de proposição e construção do parque memorial. Como materiais utilizou-se as fontes bibliográficas, especialmente os latino-americanos, mas também entrevistas e conversas informais com os envolvidos nos trabalhos de memória, coletadas durante o trabalho de campo.
A segunda frente, que insere o parque na paisagem urbana de Buenos Aires, concentrará no jogo de interesses políticos e sociais, principalmente entre o governo e envolvidos em sua construção. Objetiva-se mapear algumas das camadas históricas e sociais que foram lembradas e esquecidas, para compreender alguns discursos, desejos e imaginários de cidade relacionados à construção do Parque de la Memoria. Para tal utilizo especialmente as entrevistas realizadas em campo com funcionários do parque, as bases dos concursos (de escultura e de arquitetura), notícias de jornais e revistas e as referências bibliográficas, em especial aquelas que pensaram sobre o caso.
O último capítulo analisa os aspectos espaciais e simbólicos da arquitetura do parque articulando-a com as questões exploradas na primeira e da segunda entrada. Pretende-se refletir criticamente sobre os jogos de linguagem da sua arquitetura, como meio para identificar as possibilidades políticas, éticas, estéticas. Olha-se então por entre as perspectivas legais, simbólicas e até ritualísticas que o caso abrange. Nesse sentido parte-se de autores – como Ileana Diéguez, Georges Didi-Huberman e Andreas Huyssen – cujas reflexões auxiliam, especialmente, a refinar olhar para esses espaços.
Memórias de dor na paisagem urbana de Buenos Aires: o Parque de la Memoria