Experiência SP Safari

Mobilizando a cidade como recurso pedagógico:

a experiência do coletivo SP Safari*

*Em 2018, o coletivo foi renomeado PISA: cidade+pesquisa e sua descrição encontra-se no post PISA

sp-safari

  

Renato Cymbalista  /  Ricardo Ramos Assumpção  /  Renata Pante  /  Gustavo Marques dos Santos  /  Lua Lima   /   Murillo Martins   /  Amanda Vieirá   /   Yasmin Darviche   /   Paula Janovitch  /  Patricia Oliveira  /  Rebeca Lopes Cabral

 

 

Introdução

Este texto apresenta o coletivo SP Safari, construído a partir de experiências de docência, pesquisa e extensão na FAU-USP desde 2015. O SP Safari realiza percursos mediados em São Paulo, mobilizando a cidade como ferramenta pedagógica e construindo pontes entre o conhecimento produzido na universidade e a sociedade mais ampla. O texto constrói-se a partir de depoimentos dos integrantes do grupo, que relatam sua participação no projeto, suas experiências e aprendizados. Uma versão resumida deste texto será publicada na revista Contraste dos alunos da FAU-USP.

 

Renato Cymbalista

Em 2014 ministrei pela primeira vez na FAU-USP a disciplina optativa “Lugares de Memória e Consciência”. A ideia da disciplina[1] é a de problematizar lugares específicos nas cidades que por conta de sua história oferecem possibilidades especiais para a sociedade. Alguns territórios destacam-se por expressar de forma emblemática a memória de grupos sociais específicos, outros consagram-se como lugares estratégicos para a construção de identidades nacionais ou regionais, outros perpetuam-se na memória coletiva como palco de experiências individuais ou coletivas de sofrimento, outros ainda revestem-se de significados específicos para a narrativa histórica de grupos religiosos. Tais espaços – que podem ser chamados de lugares de memória e/ou de lugares de consciência – constituem desafios específicos para as cidades e sociedades onde se inserem, desafios que merecem tratamentos arquitetônicos e urbanísticos também específicos. A disciplina objetiva delimitar os lugares de memória e consciência como uma categoria espacial, e pensar a respeito de experiências no campo da arquitetura, do urbanismo e do paisagismo que enfrentam os atributos desses lugares e constroem soluções espaciais para os desafios por eles colocados.

Ricardo Assumpção, um dos alunos da disciplina, me procurou após a conclusão do curso e expressou o desejo de trabalhar com essa temática. A minha resposta naquele momento foi a de que não havia um campo constituído de trabalho para isso, mas que eu me dispunha a pensar juntamente com ele como viabilizar um projeto nesse sentido. Assim nasceu o SP Safari, um coletivo que realiza percursos de conhecimento na cidade, e que vem crescendo e amadurecendo rapitamente desde então.

O SP Safari tem três objetivos principais: realizar pontes entre o conhecimento produzido na Universidade e a sociedade em geral; viabilizar campos de atuação para estudantes e jovens recém formados; e – muito importante para a discussão deste número da Contraste – mobilizar a cidade como ferramenta pedagógica e de construção de conhecimento. Acredito que estamos avançando nessas três frentes.

Alguns percursos são fruto de pesquisas realizadas na USP, outros são propostos pelos nossos parceiros, e outros ainda são idealizados por nós e desenvolvidos como processsos coletivos de pesquisa. Trabalhamos com diferentes parceiros e com todos os tipos de público, incluindo aqueles que têm posições políticas e frente à cidade distintas das nossas. Trata-se de um projeto profissionalizante, e muitas vezes o trabalho é remunerado a partir de contratos firmados entre os estudantes e os parceiros.

Trabalhamos com a ideia de interpretar a cidade, mais do que simplesmente mostrá-la. Cada percurso pressupõe uma ideia, um fio condutor, a construção de um argumento a partir do qual realizamos a visita à cidade. Encontrar este caminho interpretativo pode ser trabalhoso e demorado. Os percursos estão em permanente avaliação e reconstrução, e isso é muito importante porque muitas vezes o tempo para a preparação é escasso, e correções de rota são necessárias. São Paulo não é uma cidade fácil, pronta para a fruição. Desta forma, combinamos com os percursos em campo um material pedagógico que nos ajuda a mostrar aquilo que foi destruído, o que não chegou a ser construído ou o que foi muito modificado; as leituras sociais que já foram feitas dos lugares; aspectos da cultura material que complementam a experiência.

Não há tema tabu nem desafio impossível: o SP Safari faz percursos em lugares bacanas como Higienópolis, em cartões postais da cidade como o Obelisco do Ibirapuera e o Pátio do Colégio, mas trata também de temas mais difíceis como quilombos urbanos, prostituição, territórios da diversidade sexual, ou até traumáticos, como os lugares de memória da Ditadura. A metrópole é sempre interessante com uma boa mediação. Para isso não há uma fórmula, cada lugar, temática e público constrói um desafio específico. Mas há um pressuposto geral: queremos fazer diferença, colocar ideias e perguntas novas em circulação, e não apenas repetir as narrativas consolidadas e os lugares comuns.

Como complemento aos percursos mobilizamos a maior diversidade possível de materiais: imagens antigas, cartões postais, projetos – e o acervo da biblioteca da FAU-USP é uma fonte incrível – cópias de processos judiciários, trechos literários, um anel dado em troca de uma doação para financiar a luta paulista em 1932… encontrar o material que complementa a nossa narrativa é um dos trabalhos mais estimulantes.

Em alguns percursos usamos jogos de papeis. A primeira dessas experiências foi em um percurso no local da assassinato de Carlos Marighella com alunos do ensino médio, em que distribuímos “carteiras de identidade” para os participantes, com personagens que esatavam no local ou imediações no momento do crime. Desenvolvemos a estratégia em um conjunto de percursos sobre a memória LGBT no Centro de São Paulo. em que cada participante assumia o papel de uma personagem relevante para a história da existência das minorias sexuais na cidade; e no percurso intitulado “Entre dois Mundos”, em que os participantes encarnavam personagens que permitem recuperar aspectos da história da rede de prostituição judaica da primeira metade do século XX.

Ao mesmo tempo que nascia o SP Safari, a Prefeitura de São Paulo propunha a criação das Jornadas do Patrimônio, uma das principais inovações nessa área nos últimos anos, que permitia problematizar a história e a memória para além das estratégias de tombamento e restauro. O SP Safari participa das Jornadas desde sua criação, e foi também convidado para participar da agenda oficial de comemoração do aniversário da cidade em 25 de janeiro de 2017.

O SP Safari é pensado como um coletivo, e não como um projeto de pesquisa ou extensão coordenado por um docente. Buscamos decisões e gestão coletivas, o crescimento e a autonomia intelectual de todos. Com pouco mais de dois anos de trabalho, tenho segurança que os participantes têm crescido e se qualificado no percurso, e sem dúvida me incluo entre os que crescem. Mas acredito que a ideia da horizontalidade deve ser um horizonte, e não uma fórmula indiscriminada de atuação, pois os pontos de partida são muito diferentes. Como docente, tenho um conjunto de vantagens em relação aos estudantes: a capacidade de proposição e de mobilização de parceiros, o prestígio de minha posição na USP, a experiência e o conhecimento de fontes e arquivos. Mas existem também algumas desvantagens. Para o público, aprender com um professor de meia idade é muito menos fascinante do que aprender com um jovem. Já tentei “programar” os estudantes para fazerem falas ou discursos em determinadas situações, o que não funciona. Já fui algumas vezes criticado por interferir nas falas durante os percursos, atrapalhando assim a sua atuação. A confiança é um desafio permanente e deve ser exercida radicalmente, e nem sempre nós, professores, damos conta disso.

O objetivo final deve ser a neutralização das assimetrias, mas elas não podem ser ignoradas enquanto existirem – é necessário reconhecê-las e a partir desse reconhecimento operar com responsabilidade. O trabalho de professor e de orientador exige muito desprendimento, pois o objetivo final de um professor é tornar-se desnecessário e permitir vôos autônomos.

A experiência com o SP Safari trouxe para minha atuação na FAU-USP um reenquadramento – irreversível, eu diria – das relações entre ensino, pesquisa e extensão, apontando novos caminhos para a Universidade e seus sujeitos.

 

Ricardo Assumpção

Recém-formado em Jornalismo, cursei a disciplina “Lugares de Memória e Consciência” como ouvinte em busca de maior contato com a temática da memória vinculada a espaços na cidade. Naquele momento o debate sobre a memorialização de lugares relacionados a episódios de resistência, conflitos, tragédias e violações de direitos estava muito vinculado às discussões envolvendo a efeméride dos 50 anos do golpe que instalara a ditadura civil-militar no Brasil. A avaliação para a disciplina consistiu na elaboração de um verbete para o Guia dos Lugares Difíceis de São Paulo, publicação que procura explorar locais imbricados de significado e memórias, mas que não são necessariamente vistos como marcos consagrados na cidade. Minha escolha foi o local do assassinato de Carlos Marighella, guerrilheiro e revolucionário da Ação Libertadora Nacional, principal organização de guerrilha urbana durante o regime militar, na Alameda Casa Branca, no bairro dos Jardins.

A partir da pesquisa para a redação desse capítulo, desenvolvi interesse acadêmico na temática de memória e espaços urbanos, e me interessei em construir um projeto que envolvesse a cidade como um elemento pedagógico, buscando explorar as potencialidades proporcionadas pela a presença no local onde o fato ocorreu provocando engajamento maior dos participantes. Dessa conversa inicial, nasceu o SP Safari.

Iniciamos a experiência em 2015 com a construção de um percurso pelo bairro de Higienópolis, quando tive a oportunidade de desenvolver uma primeira atividade de pesquisa documental e produção do material pedagógico que utilizamos durante o percurso. Minha primeira experiência própria de construção de um percurso se deu no segundo semestre de 2015 para o curso de difusão “Lugares de Memória das Ditaduras na América Latina” oferecido pelo Centro de Preservação Cultural da Universidade de São Paulo (Casa de Dona Yayá). Na ocasião, fui responsável pela construção e mediação de um percurso no local da morte de Carlos Marighella.

O primeiro desafio foi encontrar uma maneira de adaptar uma pesquisa que havia realizado para a redação de um texto objetivo e sucinto para o formato de um percurso engajador e relevante para os participantes. Uma preocupação central que possuíamos era evitar que a atividade ficasse com o aspecto de uma simples “aula na rua”, mas que de fato aproveitasse o local e a cidade como elementos que compusessem o que estava sendo debatido. Nesse aspecto, o ponto escolhido para o percurso revelou-se extremamente fértil. Desde 1999, a Alameda Casa Branca abriga um pequeno monumento à memória de Marighella, fruto de uma iniciativa tomada por seus próprios familiares. Em uma primeira observação, a homenagem pode aparentar estar perdida em meio às árvores e outros objetos na calçada. No entanto, ela se apresenta de fato como um espaço de disputa pela memória. Enquanto realizávamos a atividade, um homem passou correndo pela rua praticando exercícios e hostilizou nosso grupo por estarmos debatendo a memória de um guerrilheiro combatente ao regime militar.

Tive a oportunidade de coordenar esse mesmo percurso outras vezes e observei que as manifestações por parte de pessoas alheias à atividade eram constantes. Durante a atividade realizada para o VII Congresso Internacional de Imagens da Morte, em julho de 2016, uma senhora passou ao lado de nosso grupo e ao ver sobre o que se tratava o debate mostrou solidariedade e apoio a Marighella. Realizamos também uma atividade em parceria com a Escola Lourenço Castanho para alunos do 9º ano do ensino fundamental II a respeito de sítios de memória e consciência da ditadura militar e na visita à Alameda Casa Branca novamente tivemos a intervenção de uma moradora da região que se interessou pelo assunto. Acredito que a experiência mais reveladora do potencial de engajamento que a presença no local pode causar ocorreu durante a Jornada do Patrimônio realizada pelo Departamento do Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura em agosto de 2016. Após o fim do percurso, os participantes dirigiram-se voluntariamente à uma pequena banca próxima que vendia flores para deixa-las em frente ao pequeno monumento como homenagem. Essas experiências vividas em um espaço cotidiano e proporcionadas por ações individuais e voluntárias demonstram a ampla variedade de significados e disputas que a cidade possui e como as potencialidades pedagógicas da utilização desse espaço são de uma riqueza impressionante.

 

Renata Pante

Em junho de 2016, o SP Safari foi contratado pela Escola Lourenço Castanho para realizar percursos com a temática da Ditadura Militar. A proposta apresentada pela professora Kadine Teixeira dividia os alunos (entre 13 e 14 anos) em 5 grupos, que se espalhariam pela cidade para visitar cinco lugares relacionados à memória da Ditadura. Os pontos escolhidos foram: Alameda Casa Branca (lugar do assassinato de Carlos Marighella) e o prédio da antiga Auditoria Militar na Avenida Brigadeiro Luís Antônio; a Praça da Sé; a Rua Maria Antônia; o 36º Distrito Policial de São Paulo, onde operou o DOI-CODI; Teatro da Universidade Católica de São Paulo e o Conjunto dos Dominicanos no bairro de Perdizes. Além desses espaços, a atividade também envolvia uma visita ao Memorial da Resistência acompanhada pelo educativo da instituição. Ao final dessa atividade, cada grupo de alunos deveria entregar um minidocumentário abordando esses sítios de memória da Ditadura a partir de imagens capturadas durante as visitas.

Esse projeto se apresentou como um grande desafio para o SP Safari pois até então não havíamos trabalhado com um público composto por crianças e adolescentes. Nossos percursos anteriores eram dirigidos a adultos, era necessária uma nova linguagem que mantivesse os princípios que buscamos no SP Safari, mas que pudesse dialogar com esse novo público de forma acessível. Debatemos extensivamente diferentes formas as quais poderíamos abordar um tema tão sério da história brasileira, porém sem deixa-lo pesado. Desenvolvemos para cada um dos percursos diferentes materiais de apoio que buscassem tornar a atividade mais acessível. É importante ter em mente também que, apesar do constante esforço da Escola e de seus professores em promoverem atividades que estimulem a apropriação da cidade utilizando-a como peça fundamental para o aprendizado, os alunos não necessariamente desenvolveram esse hábito.

Para a visita realizada na Alameda Casa Branca, desenvolvemos pequenas “carteiras de identidade” que seriam distribuídas aos alunos, de forma que cada um seria uma personagem na história da morte de Carlos Marighella. Foi muito importante se atentar aos detalhes dessas identidades, fazendo-as parecidas com peças de jogos. Detalhes simples como a escolha de um papel amarelado, o uso de uma foto 3X4 da personagem, informações sobre sua data de nascimento, cidade e até mesmo uma digital fictícia, geraram nos estudantes muito interesse, dando-os a sensação de que não mais eram seres pacíficos em relação à história e sim partes ativas na construção daquele momento.

No percurso que abrangia o TUCA e o Conjunto dos Dominicanos, imprimimos dossiês sobre os frades dominicanos que atuaram na resistência à Ditadura Militar e foram presos pelos órgãos de repressão e colocamos em pastas que se assemelhassem à documentos oficiais de polícia. Na Rua Maria Antônia, cada grupo de alunos recebeu imagens do episódio da Batalha da Maria Antônia entre estudantes da USP e do Mackenzie em 1968 e tinha como desafio encontrar onde aquelas fotos haviam sido tiradas e quais as transformações ocorreram no espaço desde então.

Foi de extrema importância que os alunos fossem instigados a participar de forma ativa na construção das histórias que se pretendia contar com os percursos. Evidentemente nem todos os percursos tiveram a mesma quantidade de participação. Alguns foram mais bem sucedidos no engajamento, enquanto outros, nem tanto. Cada espaço revela um desafio diferente de criar uma narrativa coesa que interaja com ele de forma fluída. A Praça da Sé, por exemplo, apresenta algumas questões complexas relativas à grande quantidade de transeuntes no local que podem comprometer a atenção e o foco dos participantes. Já na visita ao prédio da antiga Auditoria Militar o engajamento se deu rápida e naturalmente por parte dos alunos que atentavam a pequenos detalhes do edifício e os relacionavam ao que haviam aprendido em sala de aula anteriormente. Para o SP Safari essa experiência foi extremamente importante e desde então as ferramentas pedagógicas que utilizamos em nossos percursos vem recebendo mais atenção e ganhando complexidade.

 

 

Gustavo Marques dos Santos

Aproximadamente na metade do meu curso de graduação na FAU-USP, quando estava prestes a concluir meu projeto de Iniciação Científica – sobre as modificações transcorridas na territorialidade da Praça da Bandeira, em São Paulo, apareceu o projeto do SP Safari e agregamos mais um produto ao projeto de pesquisa: além de um relatório, assumi o desafio de propor um percurso guiado, baseado no que estava pesquisando.

Foi uma das primeiras atividades que o SP Safari ofereceu a público, e o percurso foi elaborado e realizado com o apoio de colegas do que então era um grupo de estudos, o foi muito importante para o desenvolvimento da pesquisa e também marcantes para mim. Sentimento esse que, através da minha participação e o desenvolvimento do coletivo, tornou-se uma experiência transformadora em minha graduação. Essa “autonomia orientada”, pode-se dizer, constitui-se um rico espaço de experimentação e desenvolvimento pessoal; em que pude me enxergar como atuante na construção do conhecimento – expressão que tanto se ouve na Universidade, mas que demora a se tornar tangível para nós estudantes.

Um dos desafios do percurso na Praça da Bandeira era o de utilizar o próprio espaço, fragmentado e com pouca caminhabilidade. A saída foi a de basear grande parte do percurso nas passarelas sobre a praça da Bandeira, de onde apresentávamos os diversos projetos não realizados ou interrompidos para a Praça da Bandeira, que é um lugar muito estratégico para a cidade, ponto de fuga do Vale do Anhangabaú. Assim apresentamos projetos de Prestes Maia, Artigas, Lina Bo Bardi, entre outros.

Uma outra experiência importante foi acompanhar um grupo de inscritos em um congresso internacional sobre moradia coletivac como uma das atividades oficiais do em um percurso construído por conjuntos habitacionais na Zona Leste de São Paulo. Essa foi de uma responsabilidade e protagonismo que eu até então nunca tivera na faculdade; e me mostraram, como às duas colegas junto as quais desenvolvi esse percurso, nosso potencial de organização, produção e mobilização do conhecimento – válido tanto para o ambiente acadêmico, quanto para o profissional.

O SP Safari, dessa forma, foi um meio de expandir os saberes que havia adquirido (e uma reafirmação da importância de sua constante renovação) sobre a arquitetura e a cidade, e, principalmente, acerca da relação das pessoas com elas; seja em seus afazeres cotidianos, seja em busca de novas percepções de espaços já conhecidos. Além disso, minha participação no coletivo também contribuiu para que eu me percebesse capaz de assumir tarefas relacionadas ao oferecimento das atividades propostas por nós: desde o comprometimento com a realização de atividades que respondessem a expectativas de nossos contratantes, até a organização coletiva para que nossas pesquisas pudessem ser apresentadas de maneira interessante para um público mais amplo do que o uspiano – com o cuidado, sempre, para que o processo não deixasse de possuir um sentido individual para todos os envolvidos. Resultou para mim em um amadurecimento como estudante, pesquisador, e futuro profissional, muito significativo.

 

Lua Lima

Fui convidada a fazer parte do SP Safari no segundo semestre de 2016, para compor a equipe de pesquisa que produzia o curso Espaços de Memória e Resistência LGBT no Centro Novo de São Paulo. Os pontos altos do curso eram os percursos na cidade (o curso tinha também duas sessões em sala de aula). As condições de agenda e os métodos didáticos nos levaram a produzir três percursos distintos, mas as trocas intensas entre o grupo de pesquisadores garantiu coerência no produto final. Fiquei responsável pela realização do percurso trans.

O mais instigante da pesquisa que realizei foi procurar na cidade lugares com sinais daquilo que se quer apagar: as travestis, as prostitutas, as degeneradas. E os lugares estavam lá: discretos, mas cheios de significado. Um desses lugares em particular representa mesmo a vitória do passado sobre o apagamento: o túmulo de Andréia de Maio. Ela foi enterrada no Cemitério da Consolação no ano 2000, com o nome de batismo gravado na placa funerária. Poucos dias após a realização do curso, Andréia recebeu em 2016 uma segunda placa, em respeito ao seu nome social e sua história. Achamos por bem que esse fosse o primeiro ponto do percurso, que contaria as histórias de Andréia, Brenda Lee e tantas outras. De fato, as heroínas da história que me propus a contar deixaram sinais não só nas consciências das pessoas, mas nos espaços concretos da cidade. Elas criaram, ampliaram, transformaram esses espaços, e os coloriram com suas existências; em resposta e resistência ao preconceito, à repressão à AIDS e ao abandono. Para mim, antes de pesquisadora, travesti que sou, a realização desse percurso foi gratificante e inspiradora. Me mostrou que a população trans tem seu espaço. Ou melhor, seus espaços: na história, na sociedade, nas ruas, casa e bares, e onde mais quiserem estar.

 

Murilo Martins

No primeiro semestre de 2016 comecei a busca por temas para pesquisa científica na área de estudos de urbanização e antropologia urbana. Meu maior interesse dava-se pelas questões de gênero e sexualidade, e por isso fui convidado participar de um dos percursos que o SP Safari preparou para o SESC com essa temática. Eu fui o coordenador do percurso gay, movendo uma bibliografia muito específica – e de certa forma escassa, por conta das poucas publicações a respeito – que pudesse nos informar sobre as apropriação dos espaços do Centro por homens homossexuais desde meados da década de 60, em que o grupo começa a se materializar nos espaços.

A base narrativa do percurso pautou-se na reconstrução da memória por meio de entrevistas, acesso a fontes e documentaries, consulta a livros e periódicos. Tal interpretação do espaço possibilitou ao coletivo testar instrumentos novos, como um “jogo de papeis”, no qual cada participante recebia uma carta de algum personagem presente na história do percurso. O participante então passava a representar aquele personagem que, em certo momento, é citado durante o trajeto, trazendo o participante diretamente à cena vivida naquele espaço pelo personagem. Um dos personagens era Edson Neris, assassinado na Praça da República em 2000, e ao visitar o local anunciamos ao participante que tinha o papel de Edson Neris: “Aqui você morreu”. O jogo de papeis permite esse tipo de engajamento, e seu efeito foi variado nos percursos, e nem sempre bem sucedido.

Por se tratar de uma temática cuja presença pública é relativamente recente, foi possível encontrar testemunhos em primeira pessoa, que permitiram eriquecer e humanizar o percurso, com entrevistas de pessoas LGBT que participaram do processo de ocupação dos espaços públicos da cidade. Parte dos contatos se deu por conta do documentário “São Paulo em Hi-Fi”, que narra a trajetória da vida LGBT paulistana a partir de entrevistas com frequentadores das casas noturnas, bares, cinemas, etc. Dentre os entrevistados estava Beto de Jesus, organizador da primeira parada LGBT de São Paulo, que também foi convidado a aparecer durante o percurso gay, para conversar diretamente com os participantes.

A experiência com o percurso foi extremamente gratificante, me fazendo crescer não só como pesquisador mas também como ser humano, aproximando-me intimamente com a minha comunidade – minha história. O desenvolvimento do percurso possibilitou aliar minha área de atuação profissional com o mais íntimo da minha pessoalidade, tornando tal experiência inesquecível.

 

Amanda Vieirá

Minha interação com o SP Safari iniciou por meio de um convite para participar da construção dos percursos em torno da memória LGBT em uma programação proposta ao Centro de Formação e Pesquisa do SESC. Era um esejo antigo trabalhar ou estudar a temática LGBT. Entrei inicialmente como colaboradora para a pesquisa para o projeto, que era também um tema novo para o SP Safari e pressupunha um grande trabalho prévio à realização dos percursos. Mas o meu lugar de fala me tornou uma das coordenadoras do projeto, à frente de um dos percursos, o L (das lésbicas).

Era a primeira vez que eu me deparava com a minha história, pois em mesma enquanto lésbica não sabia praticamente nada sobre o passado das minhas smelhantes, pois nossa história foi invisibilizada. No início da pesquisa eu estava perdida, não achava fontes, me perguntava: onde estiveram as lésbicas no território de São Paulo? Onde se escondiam suas trajetórias de vida? Quem eram essas mulheres?

Foi então que uma entrevista definiu meu caminho. Por indicação de Beto de Jesus, pude conhecer Marisa Fernandes, lésbica e militante, e ela me fez ver que seria impossível dissociar a história lésbica da militância lésbica. A partir daí pude construir o percurso, em que a ausência também falava. O percurso relata inicialmente a história da repressão aos grupos LGBT nos anos 1970 e 1980, quando ser LGBT já não era mais considerado uma doença, mas era visto pela sociedade da época e pelos órgãos públicos como crime. O percurso relata algumas histórias para ilustrar como a polícia agia em suas “batidas” ou como era a estadia na prisão. O movimento LGBT começou a se manifestar contra a represssão no final dos anos 1970. O percurso relata a história da primeira passeata LGBT contra a repressão policial em, que partiu das escadarias do teatro municipal. Nessa passeata as militantes lésbicas fizeram o cordão frontal.

Outra importante passagem do percurso é a história da maior escritora de romances das mulheres lésbicas, Cassandra Rios: ainda que suas obras tivessem tiragens recordistas, foi uma das mulheres invisibilizadas, de quem poucos sabem da existência, e assim como muitos outros autores também sobfreu com a censura. A história de Cassandra Rios é relatada nas imediações da Galeria do Rock, região onde funcionou uma livraria de sua propriedade.

Por fim o percurso chega no “gueto” histórico das lésbicas, localizado na Bela Vista, onde se localizavam diversos bares para esse público feminino, atraídos uns pelos outros e alimentados pela chama do Ferro’s Bar, importante ponto noturno das lésbicas até os anos 1990. Grande espaço de atuação da militância, o Ferro’s foi palco do que é considerado o nosso pequeno Stonewall, o chamado “Levante do Ferro’s Bar” em 23 de julho de 1983, quando militantes se revoltaram contra a proibição da distribuição do zine das lésbicas, o “Chana com Chana”. Assim, a construção do percurso na cidade mostra que a sociabilidade e a militância lésbicas não podem ser dissociadas. Ao construir e coordenar o percurso, pude ver o grande interesse dos participantes, pois aquela história não era desconhecida só para mim.

 

João Carlos Santos Kuhn

Em 2013 iniciei minha pesquisa de mestrado junto ao programa de pós-graduação da FAU/USP. Como pesquisador minha principal inquietação é observar como a lógica das religiões contribuem e interferem na construção dos espaços urbanos. Fui aos poucos amadurecendo minha percepção de que determinados espaços da cidade podem ser lidos não apenas pela chave das narrativas oficiais, consolidadas ao longo de suas histórias por agentes específicos, mas também por outras narrativas de grupos não evidenciados, ou muita vezes silenciados, e que trazem para o local novos e ricos significados.

Inserido em uma realidade acadêmica, onde a circulação do conhecimento produzido no cerne das faculdades se limitam muitas vezes ao próprio universo de pesquisadores, pude perceber uma nova inquietação que dizia respeito à formação que busco construir como futuro docente. Como a minha produção acadêmica poderia contribuir de forma direta e eficaz em uma sociedade que em sua maioria não tem contato com a universidade? Foi nesse contexto que fui convidado a participar do projeto SP Safari, que tinha como uma de suas propostas trazer à luz para o público em geral esse conjunto de conhecimentos acerca da cidade e de suas diversas memórias.

Como primeira experiência, fui convidado a coordenar um passeio acerca do meu principal objeto de pesquisa na época: o Pátio do Colégio, configurado pelo colégio e a igreja do Jesuítas em São Paulo. Em um primeiro momento observei a cidade e o Pátio do Colégio como uma sala de aula tradicional, o que foi um equivoco pois essa escolha me levaria à mostrar o conjunto apenas como uma ilustração daquilo que vinha pesquisando. Nesse sentido não se justificaria mobilizar o grupo para o local uma vez que isso poderia ser feito por imagens em uma apresentação tradicional. Com as ferramentas que construímos no SP Safari fui aprendendo a utilizar o próprio espaço para demonstrar as diversas transformações ocorridas no local. Ao modificar minha estratégia de preparação e apresentação pude constatar que os diversos elementos ainda presentes na região me auxiliariam na criação de outras narrativas que, como pude constatar na execussão do passeio, aproximaram os participantes do local e daquilo que eu buscava explanar. Junto ao espaço tive a possibilidade — com o material que tinha reunido para minha pesquisa como cartas, artigos de jornais e fotografias relativos ao local — convidar os participantes para um exercício de observação e constatação dessas transformações.

Não se tratou apenas do meu conhecimento mas sim das constribuições de cada participante através de suas observações, experiências e memórias com o lugar. Tais observações enriqueceram e ainda contribuem para as pequisas que ainda hoje desenvolvo. Depois dessa experiência tive a oportunidade de coordenar outras visitas, não necessáriamente relacionadas ao Pátio do Colégio mas que dizem respeito à cidade de São Paulo, que me auxiliam no aprendizado pessoal, como pesquisador, e na construção da meu percurso como docente que tem a pretensão de construir novas formas de ensino e aprendizado acessíveis a todos.

 

 

Yasmin Darviche

O percurso que realizei com o SP Safari foi construído a partir da proposta de transformação de uma pesquisa de iniciação científica desenvolvida entre 2013 e 2014 na FAU-USP. Esta pesquisa teve como tema o patrimônio edificado no bairro do Brás, com estudo pormenorizado para um perímetro compreendido entre as ruas Inácio de Araújo, Bresser, Coimbra, Dr. Costa Valente, Dr. João Alves de Lima e Hipódromo. A ideia de elaboração do percurso a partir dessa pesquisa foi levada ao SP Safari no início de 2016, e desde o começo encontrei um ambiente de bastante acolhimento.

Como não havia tido contato com as propostas do grupo anteriormente, passei a participar das reuniões, acompanhando um pouco dos trabalhos que vinham desenvolvendo. Nesse contexto, percebi a preocupação em organizar roteiros que enfocassem a cidade como meio de estudo, e não como a materialização de uma pesquisa teórica. Dessa forma, dentro do grupo pude repensar a pesquisa com o objetivo de torná-la um percurso, o que demandava outras formas de aproximação com o território. Para isto, estabeleci conversas com moradores, comerciantes, agentes da ação no território, mas também foi necessário determinar dos pontos de parada e os elementos para os quais seria dada maior atenção. Ou seja, fazer com que o território e as formas de vida desenvolvidos ali contassem para os participantes a forma como se apropriaram de um tecido urbano que ainda mantém muito de sua configuração quando da formação do bairro, no início do século XX.

Ainda que tenha partido de uma pesquisa concluída, a proposta de utilizar a cidade para explicá-la foi bastante desafiadora. A ideia de utilizar-me do espaço urbano para explicar os temas que diziam respeito ao patrimônio, fez com que eu passasse a olhar as dinâmicas do cotidiano e, principalmente, a relação das pessoas com o território, ampliando a pesquisa, que inicialmente olhava de forma muito simplificada para a relação desta materialidade com aqueles que a vivenciavam diariamente.

Assim, novas visitas de campo foram feitas com a participação de membros do SP Safari, e a partir de conversas com o grupo, pude estabelecer outros e mais ampliados olhares para o objeto da pesquisa inicial. Esta nova visão guiou o percurso, realizado durante a 2ª Jornada do Patrimônio, em agosto de 2016, em que os participantes eram instigados a olharem um outro Brás, caracterizado pelo comércio de menor escala, comparado àquele que em uma visão geral caracteriza o bairro, e principalmente pela habitação, em sua maioria em edificações do início do século XX, que em partes de mantém, tendo passado por diversos momentos do bairro, sendo ressignificadas a cada novo usuário. Ter realizado o percurso sob essa nova ótica, que acabou por apresentar uma visão muito diferente da pesquisa inicial, só foi possível a partir da visão que o SP Safari pretende construir para apreensão do território urbano da cidade. Após a finalização do percurso muitos participantes comentaram ter se surpreendido com aquele “outro Brás”, espaço por onde muitas delas nunca haviam passado ou então nunca se atentaram para as questões abordadas.

 

Paula Janovitch  

Para mim a cidade é uma sala de aula sem paredes. Nem sempre contar e caminhar acontecem em sincronicidade. E isso em si já é um grande desafio, sair das quatro paredes da sala de aula e ganhar as ruas com participantes que nem sempre te escutam e muito menos estão olhando pra voce o tempo todo. De certa forma a cidade rouba a cena, seja por conta das interferências próprias das ruas, seja porque no ambiente urbano estamos todos numa condição mais dinâmica e ativa do que sentados numa sala de aula. Na rua nada é muito confortável, a calçada é estreita para tanta gente andar junto ou se agrupar nas paradas. Os barulhos interferem na compreensão do que falamos. Ao mesmo tempo, a presença da cidade gera questões e instiga reflexões que contagiam todos os participantes. Por isso penso que fazer um percurso é sempre um movimento compartilhado, a cada deslocamento e parada, questões surgem da observação/reflexão dos diversos participantes através da passagem do conteúdo ou mesmo da combinação de estar no lugar onde os fatos ocorreram, mesmo quando este lugar já tenha sofrido grandes transformações arquitetônicas. Sinto que o esforço de mostrar o que não dá mais pra ver no ambiente urbano provoca um retorno funtamental para quem prepara o percurso e para os participantes. Ambos recebem muito mais do que a narração de uma história da cidade perdida no tempo, mas a experiência de percorrer algo que resignifica o lugar e se prende ao espaço. De certa forma no percurso existe a mágica de amarrar tempo e espaço num nó só. E isso para mim é algo revolucionário na forma de aprender, ensinar e compartilhar.

A minha experiência com um percurso pela cidade se deu em 2017 com a proposta do SP Safari e Sesc Santana de contar a história de um grupo de imigrantes de origem judaica que viveu e morreu na cidade de São Paulo, sendo que tanto na vida como na morte, por participarem do universo da prostituição, foram estigmatizados e deixaram poucos registros materiais de sua presença na cidade. O desafio estava em percorrer estes lugares da cidade com poucas referências paisagísticas a fim de contar esta história que envolvia imigração, prostituição, estigma e apagamento de memórias. Para isso foi necessário desenvolver uma série de estratégias que colocassem os participantes em contato com o assunto. De partida introduzi um pouco a história da prostituição estrangeira na cidade e fizemos um brinde como se estivéssemos num antigo bordel. A partir deste momento iniciamos o percurso com a proposta de que os participantes trocassem de identidade assumindo a de algum personagem deste grupo de imigrantes de origem judaica. Com um crachá com nomes em idiche (lingua falada pelos judeus do leste europeu) e rostos inventados, cada um escolheu sua nova identidade. De cara, a experiência de ser parte da história que iriamos contar, criou uma unidade e interesse muito maior com o que cada um “ foi “ ou poderia ter sido no passado. Perguntas e reflexões surgiram tanto nas ruas comerciais do Bom Retiro, como na antiga sinagoga deste grupo – hoje uma mecância de carros – facilitadas pelo fato de estarem todos de certa forma curiosos com o seu próprio passado. Nos dois cemitérios que visitamos, o mesmo efeito se deu. Acrescentamos à questão da identidade e os outros recursos já mencionados nos percursos do SP Safari, alguns rituais judaicos significativos nos cemitérios, como a colocação de pedras nas sepulturas para marcar as visitas e a lavagem de mãos para a saída do mundo dos mortos. Foi um dia intenso em que senti que todos nós tivemos que caminhar no tempo e no espaço da cidade, ninguém voltou o mesmo pra casa.

 

Patrícia Oliveira

Minha experiência inicial com o SP Safari foi como participante. Ao fazer o percurso no síto do assassinato de Marighella, que tratava sobre a Ditadura Civil-Militar Brasileira a partir de uma pedra de homenagem, me encantei com as possibilidades de debate e ensino da proposta.

Sou professora de história e bibliotecária por formação, e minha experiência profissional sempre esteve diretamente ligada aos documentos e seus acervos. Na História, acessando a documentação para composição de narrativas, e na Biblioteconomia, lidando com a organizacao, difusão e preservação dos suportes físicos. No SP Safari como participante, conheci uma possibilidade de utilizar mais um tipo de dispositivo, o espacial. Os espaços também são portadores de memória , e em sua territorialidade é possível desenvolver trabalhos sobre a consciência dos eventos a eles relacionados.

Passei a integrar o grupo de pesquisa Lugares de Memória e Consciência, e conhecer o campo teórico sobre a memória e os acionamentos a partir dos espaços, monumentos, e inclusive, ausências e apagamentos. Fui localizando nos textos às estratégias utilizadas e aprimoradas para cada outro percurso que eu acompanhei, como a visita ao Obelisco e ao Monumento aos Bandeirantes.

Fui convidada então a construir um roteiro a partir de um tema proposto pelo Turismo Social do SESC Santana: quilombos urbanos. Ao lidar com a chave da memória, eu poderia explorar tanto a temática quilombola, quanto a memória sobre a negritude em São Paulo no período da Escravidão no Brasil e sua abolição. O cotidiano dos negros é bastante tratado na historiografia ou nas demais ciências humanas, e não é a falta de fontes que faz desse recorte um desafio, mas sim a forma de abordá-lo, já que de partida, tratamos de ausências e apagamentos.

Ao construir esse roteiro, que apesar de tratar de algo sem materialidade, o.quilombo urbano do Bairro do Bexiga, lancei mão das estratégias dos percursos que experienciei, da experiência com a história e os debates da historiografia e da técnica bibliotecária para buscar as melhores e mais expressivas fontes para enfrentar o tema.

A experiencia não poderia ter sido mais rica. A fase de teste do roteiro mostra ainda outra faceta, que é a didática com o público e a movimentação no espaço proposto. A sensação é de que um roteiro nunca está concluído, pois a variedade de público, enfoque, descobertas de novas fontes e mesmo a dinâmica do momento da visita imprimem uma dinâmica de mudança muito própria aos conteúdos.

Sinto um grande amadurecimento profissional após a experiência de concluir um primeiro projeto de roteiro, e acredito que as jornadas de conhecimento propostas estão bastante de acordo com os debates recentes sobre a educação, em que é exigido cada dia mais que haja troca significativa entre o educando e o educador, novas técnicas que deixem mais próximas – na linguagem ou mesmo na materialidade – memórias e debates que são temporalmente distantes dos alunos.

 

 

Rebeca Lopes Cabral

Ingressei no SP Safari pela pesquisa de Iniciação Científica que realizei sobre os lugares de memória da ditadura, na Escola da Cidade e junto à FAPESP, que agora continua enquanto uma pesquisa de mestrado na FAU-USP. Acredito que o trabalho junto ao coletivo é capaz de ampliar as entradas da investigação que, pensando as ferramentas, técnicas e métodos de representação das graves violações de direitos humanos no período ditatorial argentino através do espaço, pretende contribuir para pensarmos atuações políticas no Brasil, e desde o campo da arquitetura e do urbanismo.

Sabe-se que os lugares relativos às memórias difíceis – memoriais, monumentos, placas comemorativas que tratam das violências do passado – vêm sendo amplamente reivindicados e construídos na contemporaneidade como provas jurídica, espaços de significância política e simbólica. Em um primeiro instinto esses lugares e objetos talvez nos levem a desviar o olhar; entretanto, encará-los também pode fazer questionar o por quê de nosso desconforto. Nessa medida tornam-se capazes de mudar a cidade, nosso cotidiano, e mostram-se ferramentas poderosas de atuação política. Mobilizando o passado nos ajudam a questionar o presente e nos levam a pensar futuros possíveis.

Os trabalhos do SP Safari, contudo, não se debruçam exatamente sobre esses monumentos. Trata-se, ao meu ver, da construção de novos monumentos. Ou, como chamaria James Young, contra-monumentos. Afinal, no SP Safari, os percursos propostos extrapolam a ideia convencional de um monumento. Não se constrói nenhum objeto em homenagem a um fato histórico ou personagem, como quiçá se imaginaria ser a função primária de um arquiteto que projeta esse tipo de espaço. A proposta é, ao contrario, trabalhar com o pré-existente e com as camadas de memória soterradas e pulverizadas na cidade. Propor, a quem faz os percursos, novas topografias, e assim possibilidades de olhar para a urbe.

É preciso ter claro que a memória não “se dá” no tempo/espaço. A memória é construída e desconstruída num constante devir, a partir de um complexo de disputas. Ao longo da história foi agenciada enquanto ferramenta política, estando na maioria das vezes em prol dos interesses daqueles que tinham voz nos distintos contextos. Nessa medida estão os esquecimentos, fatos históricos que, por terem sido colocados em escanteio, foram capazes de conformar as lembranças que interessavam em determinado tempo/espaço. No SP Safari com as histórias e memórias que por muito estiveram na penumbra, encontradas através de nossas pesquisas em livros, documentos ou por meio de depoimentos. Os esquecimentos, ou memórias antes na penumbra, ao serem associados aos lugares da cidade e transmitidos ao público, buscam ampliar os significados e fazer, de nossos espaços cotidianos, locais de aprendizagem.

Nesse sentido, minha experiência no SP Safari pode ser pensada em três pontos centrais. Primeiramente, me envolver no coletivo significou sair do lugar de conforto da academia e dos meus colegas, que pensam de modo parecido comigo. Fui desafiada a estabelecer novas conexões entre a teoria e a prática, de transmitir conhecimento às pessoas de diferentes idades, histórias e ideias, que se inscrevem nos percursos. Enfim, de encarar a cidade. Em segundo lugar significou a transformação da pesquisa, centrada nos lugares de memória da ditadura, em porta de entrada para pensar e mobilizar outras temáticas. E, por fim, através do SP Safari aprendi que não há lugar nenhum na cidade que não diga nada. É preciso perambular pelas ruas com óculos de arqueólogo, juntando aquilo que vemos com o que sabemos que desapareceu.

 

 

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Têm sido muitas as conquistas e o crescimento em pouco mais de dois anos de trabalho até agora no SP Safari, mas o projeto não teria sido concebível sem a universidade pública. É ela que reuniu o material humano (estudantes de graduação e de pós, professores, colaboradores) que é a essência do projeto. A relação de fluidez entre as atividades de docência e monitoria e a concepção e realização dos percursos na cidade é fundamental: algumas ideias saem da sala de aula, outras alimentam a sala de aula, outras desafiam a própria hegemonia da sala de aula como local único de aprendizado acadêmico.

A pesquisa realizada na universidade, pelos integrantes do projeto e por terceiros, é outro insumo básico. O tempo de elaboração intelectual foi também dado pela nossa presença na Universidade, assim como o acesso a acervos e bibliotecas. Pensada como plataforma de interlocução com a sociedade, abrindo-se à maior diversidade possível de públicos, a Universidade pública revela-se um instrumento mais do que importante, ela é na verdade incontornável.

 

[1] Além da disciplina optativa de graduação, foi também instituído em 2013 o grupo de pesquisa “Lugares de Memória e Consciência” (FAU-USP/FFLCH-USP/CNPq) que coordeno juntamente com Simone Scifoni (FFLCH-USP), e em 2015 foi criada a disciplina na pós-graduação da FAU-USP “Lugares de memória e consciência: teoria e intervenção”. Além disso foi ministrado o curso de difusão “Lugares de Memória das Ditaduras na América Latina” (CPC-USP, 2015).