Bibliografia de urbanismo open source

Andre Deak*

São Paulo – Janeiro 2017

Resumo: A terminologia urbanismo de código aberto (ou urbanismo open source) tem sido utilizada para determinar certa forma de realizar arquitetura ou projetos urbanos, lato sensu. Encontramos duas correntes principais ligadas ao termo: a espanhola, conectada principalmente com os movimentos Occupy e 15M, que propõem um sentido mais anti-capitalista; e a norte-americana, embasada em experiências como as de São Francisco, mas muitas outras cidades também, focada na cooperação. Uma terceira visão, da Turquia, também compõe o quadro de referências, com uma proposta conectada ao que o autor chama de “arquitetura anômala”. E vimos que ainda há certa controvérsia de uso do termo, uma vez que tem sido usado também como sinônimo de grátis, sem o sentido de cooperação que o “open” carrega desde o movimento do software livre – onde também a dicotomia entre free e open aconteceu.

palavras-chave: cidades, urbanismo open source, código aberto, espaço, cultura hacker

Cidades no mundo todo têm visto cidadãos determinados a ocupar espaços com o que tem sido chamado de urbanismo tático, de guerrilha, pop-up, Urbanismo DIY (do-it-yourself) ou DIWO (do-it-with-others). Instalações criadas como intervenção urbana, sejam temporárias ou não, que modificam o uso do espaço público ou privado. E mais que isso, algumas destas iniciativas são propostas como modelos, ou pelo menos compartilham seus métodos e suas experiências em cartilhas, na web, para que outras pessoas se apropriem destas tecnologias, e assim copiem ou remixem da melhor forma que puderem, seguindo uma tradição nascida no desenvolvimento de software de código aberto. Muitos textos fazem analogias ao conceito de urbanismo open-source, às vezes com significados diferentes. Esta breve revisão verifica quais contextos têm sido usados quando se fala em urbanismo open-source e traça um breve mapeamento etimológico do termo.

Um dos primeiros textos a citar o termo é de 2004 e especulava sobre os futuros possíveis a partir da realidade virtual que a plataforma Second Life proporcionava, com a construção de um universo virtual e avatares. De acordo com Tuters (2004):

It is arguably the case that we are witnessing a transformation of the historical notion the “city” a notion held since the surplus of agriculture delivered to accumulative centers, some 10,000 years ago, led to the construction the communal living spaces. that we have held for 10,000 or more years. Today, the imagination of programmer, with her coded control of the virtual’s interface with the real, is the architect and engineer who constructs a consensual, urban reality shared by millions worldwide, a virtual reality that forms a meaningful part of their real existence. We can look here to games like Second Life, which allow players to collaborate on creating these VR worlds, as potential models for an open source urbanism.

Tuters, no entanto, está mais interessado em mídias locativas, e em como poderão impactar o espaço público urbano e as psicogeografias e derivas de seus cidadãos, conforme propunham os situacionistas. Cita, como exemplo, a integração que viu em uma exposição de um equipamento de realidade virtual que integrava o videogame de tiro em primeira pessoa Quake com ruas reais. Quase 15 anos mais tarde, em 2016, o jogo Pokemon Go traria uma experiência similar para um nível global, com milhões de jogares no mundo todo experimentando a realidade aumentada em seus celulares.

Mas um ponto tocado por Tuters está diretamente relacionado ao desenvolvimento que o termo teve mais tarde, quando ele fala em After-Architechture [pós-arquitetura, em livre tradução]. Ao citar grupos dos anos 1960 de arquitetura utópica como Archigram e Superstudio, lembra de uma frase que se conecta ao sentido atual de ocupação de espaços públicos e suas modificações de uso: “o direito instintivo que cada cidadão têm de criar seu próprio ambiente”.1

Tuters ainda cita o movimento de algumas cidades para abrir os códigos do programa GIS, permitindo que os cidadãos tenham acesso a estes dados geográficos, mesmo que possam ser usados apenas por especialistas, aproximando-se novamente do conceito de código aberto trazido pelo movimento do software livre e pela cultura hacker.

Sinteticamente, Pierre Levy define a cultura hacker com estas características (2001, pp. 27-33):

Acesso aos computadores (…) deve ser ilimitado e total (…) Todas as informações deveriam ser livres (…) Hackers desconfiam das autoridades e promovem a descentralização (…) Hackers devem ser julgados por seus “hackeamentos” e não por outros critérios, tais como escolaridade, idade, raça ou posição social (…) Você pode criar arte e beleza em um computador (…) Os computadores podem mudar sua vida para melhor.

Ainda, conforme lembra Sergio Amadeu da Silveira (2010), “em geral, na matriz do pensamento hacker está enraizada a ideia de que as informações, inclusive o conhecimento, não devem ser propriedade de ninguém, e, mesmo se forem, a cópia de informações não agride ninguém dada a natureza intangível dos dados. ‘A informação quer ser livre’ é uma frase atribuída a Stewart Brand (1985, p. 49) que é central no ideário hacker”. Segundo Amadeu:

O pesquisador finlandês Pekka Himanen (2001, p. 18), ao estudar a ética hacker em torno do desenvolvimento do sistema operacional GNU/Linux, constatou que “o primeiro valor a guiar a vida de um hacker é a paixão, ou seja, algum objetivo interessante que o move e que é de fato gerador de alegria em sua realização”. Himanen observou que hackers, quando superam desafios, compartilham o seu aprendizado com sua comunidade. Desse modo, os hackers adquirem reputação, disseminando seus conhecimentos e combinando paixão com liberdade para superar desafios complexos.

Alberto Corsín Jiménez propôs o conceito de “direito à infraestrutura” (JIMÉNEZ, 2014), dentro do contexto do urbanismo open source, que dialoga com a citação de Tuters sobre “direito ao próprio ambiente”. Para chegar em seu conceito, ele elabora uma breve história do conceito de open source, concluindo que diferentemente do software livre ou de código aberto, o hardware de código aberto gera um produto físico. Ao mesmo tempo, como ele cita, em alguns casos de projetos de arquitetura open source, o resultado é sempre um produto beta, inacabado. Um protótipo. Segundo Jiménez (p. 348, 2014):

The prototype never quite reaches closure (it is always less than itself, less than one) yet it keeps forking and enabling novel extensions of itself (it is always more than its own self-scaling, it is more than many forms of itself). Thus, open source designs aim not so much for closure as for proliferation; less for definition than “infinition”. (…) Moreover, prototypes, as we shall see below, call forth a particular sociotechnical arrangement for carrying out experimental projects in the city.

Jiménez passou dois anos realizando uma pesquisa de campo com coletivos espanhóis, e relata suas experiências e conclusões, principalmente citando alguns casos dos grupos Intelingencia Colectiva e Zoohaus, além de experiências nascidas depois do 15M, como ficou conhecido o dia 15 de maio de 2011, nascimento do movimento Occupy espanhol. Sua proposta de campo de estudo sobre o direito à infraestrutura dialoga com Lefebvre (O direito à cidade, 1996) e Harvey (Cidades Rebeldes, 2012). Mas também com Bruno Latour, quando percebe os processos abertos como tecnologias replicáveis, reprogramáveis e infinitas:

Objects and devices, we have seen, press and enact material exigencies over social relations. As Bruno Latour famously put it, “technology is society made durable” (Latour, 1991). However, such durability is as much an accomplishment of the material affordances of devices as of the work invested in their standardisation, classification, and stabilisation (Bowker and Star, 2000; Lampland and Leigh Star, 2009). In the case of open source infrastructures these processes are deliberately kept open to scrutiny and readaptation. They are designed to be structurally unstable, to prevent their being black-boxed. Indeed, their very vocation may be defined as infinitive white-boxing. However, because of this they are also terraforming the nature of what counts as ‘infrastructure’. There is a very real sense in which every process of infrastructuring undoes itself.

Outra aproximação sobre o urbanismo open source vem dos Estados Unidos, que, apesar de também dialogar com o conceito de commons e de produção peer-to-peer trazida por Benkler, debruça-se muito mais nos casos de Paris e São Francisco para demonstrar certas características que estariam tanto no movimento do software livre / open source quanto nestes exemplos de open source urban commons:

constructing practice manuals to be freely copied, used, developed in peer-to-peer relationships and shared by everyone, the results of which are not private entities but self-managed commons.

the production of urban commons can be understood as part of a larger movement of open-source ‘commons-based peer production’; i.e., a form of production geared towards a more equitable distribution of power, knowledge and the means of production.

Para além das matrizes norte-americana e espanhola, o pesquisador e arquiteto Gökhan Kodalak, de um grupo interdisciplinar de Istambul, na Turquia, traz uma aproximação bastante original com a proposta de “arquiteto anômalo” (2015):

Every multitude has its Anomalous. The multitude of common space has the Anomalous Architect. The etymological root of anomalous (anomalos) is very different from abnormal (anormalos), which designates a deviation from the norm (ab+norma), whereas anomalous refers simply to the uneven, the unequal (an+homalos). In other words, the anomalous is not a heretic deviating from orthodoxy, but rather that which functions without an origin and perseveres without referencing an essence. Similarly, the anomalous architect is not to be confused with a domestic expert, or with a flag-bearing avant-garde whose self-proclaimed prophecy is to know what needs to be done and leads the submissive masses towards their fate. As a transversal agent, the anomalous architect is situated neither at the front nor at the centre of architecture, but always at the border, at the interface, not as ‘another thing with respect to the limit’, but as ‘the experience of the limit itself’. (…) Without any need for institutional requirements or certifications, anyone who helps render architecture horizontally collective, dynamically temporal and differentially performative can become an anomalous architect.

Kodalak destaca que, na Turquia, muitos dos protestos que levaram milhares às ruas começaram como “protestos arquitetônicos”, onde manifestantes ocupavam espaços públicos contra a demolição de parques (Gazi Park) ou a reconstrução de edifícios que ocupariam lugares considerados commons – não necessariamente públicos, mas apropriados pelos cidadãos. Utilizando um conto de Kafka como referência, Kodalak explica que “o arquiteto anômalo não é nada senão o veículo performático pelo qual a multidão afirma sua coletividade”.2

Como exemplo, Kodalak cita outras áreas em que autores criaram obras abertas para construção coletiva, como as White Paintings de Robert Rauschenberg (open-paintings), ou a obra 4’33” de John Cage (open-music), ou ainda o Teatro da Crueldade, de Antonin Artaud, que em 1938 teorizava sobre a abolição do palco e da plateia (open-teathre).

Between the anomalous architect and the multitude a monstrous alliance is to be formed to produce a new type of architecture, namely Open-Architecture. (…) When Cedric Price and Joan Littlewood’s ‘Fun Palace’ was first conceived in 1960 as a huge ephemeral structure without any predetermined programme or fixed spatial configuration, it was thought to express nothing but the fantasy of a technocratic hippie-town on crack. Instead, it was a playful experiment in open-architecture and an invitation to spatial actors to fill in the programmatic gaps with their spatial desires and collective activities.

Mais adiante, Kodalak propõe que ele próprio seja um arquiteto anômalo, uma vez que realizou o projeto Open-Cube. Foi um projeto em Antalya, na Turquia, em setembro de 2013, em que foram montados cubos com rodinhas em diversos pontos da cidade, que foram apropriados pelos moradores das mais diversas formas: espaço de trabalho, de oração, de brincadeiras.

figura 1. Karaalioğlu Park, Antalya, Turquia. Imagem de Kodalak.

At the end of his magnum opus Towards a New Architecture, one of the most influential books on modern architecture that, for many, still maintains its hypnotising power, Le Corbusier provided a choice: ‘Architecture or Revolution’. Insofar as architecture is utilised, if networks of authority are employed as a regulatory apparatus to discipline and order the masses, ‘Revolution can be avoided.’ However, I prefer to end this essay, not with a conservative rhetorical choice, but with the radical possibility of a monstrous alliance. Architecture and Revolution. Revolution can be incorporated.

Como em todo conceito recente, há ainda controvérsia em certos usos. O vencedor do prêmio Pritzker de 2016, Alejandro Aravena, anunciou que estaria tornando público seu projeto de casas sociais, para “uso open source”, oferecendo os arquivos para download no site do seu escritório, Elemental. Uma vez que não foi licenciado de forma livre ou aberta, em licenças como creative commons ou domínio público, Jiménez contesta o uso do termo open source com uma série de seis argumentos (2016):

1. Aravena has made his designs available for download on Elemental’s website.

2. However, making your designs “available for download” is not the same as “opening access” to them. To “open access” requires unlocking the intellectual property rights that apply to any design.

3. The designs are available as .dwg files, which are the native file format for AutoCAD data files. AutoCAD is proprietary software (and rather expensive at that).

4. Insofar as engineering CAD files require a specific software and knowledge to be used, these designs will remain unintelligible and unworkable to most of the people who might ever find themselves in the position of building their own houses.

5. The designs, therefore, whilst free to download do not in fact problematize the expert and governance systems on which urban planning rests: why some people can “do” design whilst others cannot, who are the experts that get to say (and on what authority) what counts as a design system, etc.

6. We start to see the difference, then, between “free to download” and “open source”.

A truly “open system” for urban designs requires problematizing what “design” means for every community project: what languages of description are inscribed in a design system, what gets recognized as “expertise”, whose competence and skills and knowledge get enlisted into the project, for what purpose and in what contexts, etc.

No Brasil, pouco ainda se produz de estudos sobre o tema. Uma das únicas citações sobre o termo está num breve trecho de uma tese de livre-docência (BEIGUELMAN, 2016):

Ao reinventar as formas de ocupar as ruas e as próprias noções de política urbana, projetos tão diversos – dos pontos de vista ideológico e tecnológico –, como Bueiros conectados, Fogo no barraco e Dancing Traffic Lights, fazem com que a ideia de cidades inteligentes se confunda com a práticas emergentes de cidadania, fazendo eco à noção de “urbanismo de código aberto” (Open Source Urbanism). Não se trata mais de apenas planejar e regrar o espaço coletivo, mas sim de como mobilizar para que essas regras sejam fluidas o suficiente para constituir e reconstituir o uso comum, conforme as necessidades do momento.

A pesquisa pelo termo “Open Source Urbanism” traz 4.990 resultados no Google, incluindo citações do termo em blogs ou citações informais, ou mesmo notícias – um número que pode ser considerado bastante baixo, uma vez que o mecanismo busca em 130 trilhões de páginas3. No Google Scholar, 198 resultados, com Jiménez sendo o mais citado e, portanto, referenciado. Bradley e Tuters aparecem na sequência. Apenas nove resultados na busca do portal Research Gate. O portal Dedalus, da Universidade de São Paulo, não traz nenhum resultado que combine urbanismo open source ou urbanismo código aberto. A biblioteca digital da USP traz apenas um único resultado para o termo combinado, de Beiguelman (2016). Uma busca por “urbanismo open source” no Google Scholar traz apenas 17 resultados, entre eles Beiguelman e Sassen (2013).

* Trabalho final da disciplina AUH5862 Intervenções em Redes Urbanas (espaços híbridos e expandidos na cidade contemporânea), ministrada pela Professora Giselle Beiguelman, Programa de Pós-graduação FAUUSP.

Referências

BEIGUELMAN, Giselle. Da cidade interativa às memórias corrompidas: arte, design e patrimônio histórico na cultura urbana contemporânea. 2016. Tese

(livre-docência) Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. Disponível em <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/livredocencia/16/tde-09112016-145703/publico/LD_GISELLE_BEIGUELMAN_low.pdf > Acesso em 15 de janeiro de 2017

BRADLEY, Karin. Open-Source Urbanism: Creating, Multiplying and Managing Urban Commons. Disponível em <https://www.researchgate.net/publication/281993681_Open-Source_Urbanism_Creating_Multiplying_and_Managing_Urban_Commons?origin=publication_list > Acesso em 15 de janeiro de 2017.

JIMÉNEZ, Alberto Corsín. The right to infrastructure: a prototype for open source urbanism. Environment and Planning D: Society and Space 2014, volume 32, pag. 342–362. Disponível em: <http://journals.sagepub.com/doi/pdf/10.1068/d13077p > Acesso em 15 de janeiro de 2017.

JIMÉNEZ, Alberto Corsín. Open source urbanism after the Pritzker Prize.

Disponível em: <http://urbanbetas.cc/open-source-urbanism-after-the-pritzker-prize-2/ > Acesso em 15 de janeiro de 2017.

KODALAK, Gökhan. A Monstrous Alliance: Open Architecture and Common Space. 2015. Disponível em <http://bulletin.knob.nl/index.php/footprint/article/view/900> Acesso em 15 de janeiro de 2017.

LEVY, Pierre. Cibercultura. Editora 34: São Paulo, 1999.

SASSEN, Saskia. Open Source Urbanism – Op-Ed – Domus. Disponível em: <http://www.domusweb.it/en/op-ed/open-source-urbanism/>. Acesso em: 18 fev. 2013.

SILVEIRA, Sergio Amadeu da. Ciberativismo, cultura hacker e o individualismo colaborativo. REVISTA USP, São Paulo, n.86, p. 28-39, junho/agosto 2010. Disponível em <https://www.researchgate.net/publication/274359779_Ciberativismo_cultura_hacker_e_o_individualismo_colaborativo> Acesso em 15 de janeiro de 2017.

TUTERS, Marc. The Locative Commons: Situating Location-Based Media in Urban Public Space. 2004. Disponível em: <http://wiki.commres.org/pds/Project_7eNrf2010/The%20Locative%20Commons%3B%20Situating%20Location-Based%20Media%20in%20Urban%20Public%20Space.PDF> Acesso em 15 de janeiro de 2017.

1Tradução livre: The instinctive right that every individual has to create his own environment.

2 The anomalous architect is nothing but the performative vehicle with which the multitude affirms its own collectivity.

3https://www.google.com/insidesearch/howsearchworks/thestory/